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segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A LISBOA NOTURNA DOS IRMÃOS NOVAIS


O Estado Novo português não nutria grande afeição pela noite. A sua natureza antidemocrática, conservadora e censória fazia com que a visse como um local de transgressões, logo como não particularmente digna de visibilidade.
É neste contexto que as imagens de dois irmãos, Mário e Horácio Novais, fotógrafos comerciais, se revelam particularmente interessantes, facultando a possibilidade de olhar para uma rara Lisboa noturna, capital de um país que se queria diurno, claro e bem-comportado.


Estúdio Horácio Novais, Praça dos Restauradores, Lisboa, sem data
Colecções da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal (Flickr Commons)

O período do Estado Novo português, regime político liderado inicialmente por António de Oliveira Salazar, e que se estendeu entre 1933 e 1974, sucedendo a uma ditadura militar mais breve, instaurada em 1926, é muita vezes designado como "a longa noite Salazarista". Mas a verdade é que, descontando naturalmente a intenção metafórica da designação, o status quo do período não mantinha grande estima pela noite. Ao contrário de outras grandes cidades no mesmo período, como Paris , e pela acção de nomes como Brassaï , apenas para citar um exemplo, a Lisboa do Estado Novo aparentemente não inspira um grande imaginário nocturno.

A natureza controladora e moralista do regime não favorecia a visibilidade da vida nocturna, uma vida que chegara a ser fervilhante na Primeira República (1910-1926). Nessa época, ao mesmo tempo que o país saltava quase constantemente de crise política em crise política, com alguns golpes e contra-golpes mais ou menos militares pelo meio, estabeleceram-se na capital night-clubs que, à maneira americana, apresentavam música ao vivo, por vezes introduzindo o jazz nascente que começava a vir do outro lado do Atlântico. Esta novidade complementava aspectos mais correntes da vida nocturna duma capital europeia, fossem eles mais aceites, como os cafés e os teatros, fossem eles de natureza mais marginal, como era o caso dos bordéis e dos bares mal afamados. Essa capital que se modernizava e alumiava com luzes eléctricas, que fugia dos padrões convencionais, não deixou de influenciar as franjas mais arrojadas da elite cultural portuguesa, que se afastaram do gosto dominante, naturalista ou romântico, herdado do século anterior. Experimentaram o modernismo e o futurismo, escreveram e pintaram com escândalo odes à maquina, à electricidade e à vibração da cidade.

Mas a sociedade portuguesa e a sua intelectualidade continuavam, na verdade e na sua maioria, conservadoras e presas aos paradigmas antigos. Mesmo aqueles que tentaram acertar o passo com as vanguardas europeias (e que sobreviveram à epidemia da pneumónica, ou gripe espanhola, que ceifou gente como Amadeo de Souza-Cardoso e Santa-Rita Pintor) acabariam quase todos, com a entrada do Estado Novo, por adequar a sua modernidade às orientações nacionalistas do SNI (Secretariado Nacional de Informação), organismo público então criado, responsável pela propaganda política e acção cultural. A máquina, a electricidade e a fábrica deixaram de ser coisas a salientar e "Deus, Pátria e Família" tornou-se o lema dum regime que se revia em valores rurais e morais mais tradicionais.

Um país avesso à visibilidade

Um dos factos mais interessantes na natureza do Estado Novo era a sua obsessão em esconder quaisquer eventos que violassem os costumes e ordem vigentes. A censura prévia, que escrutinava os jornais e impedia a publicação de notícias "sensíveis", actuava não só sobre os assuntos de natureza política, como seria de esperar numa ditadura, mas também, e com particular vigor, em matérias que tinham a ver com moralidade e a ordem pública. Altercações entre vizinhos ou amantes, discussões em espaços públicos, crimes, prostituição, tudo isto era assunto onde a censura intervinha e impedia constantemente a publicitação, embora em termos práticos houvesse uma grande tolerância com esses aspectos mais obscuros, mais marialvas, da vida portuguesa. As coisas podiam-se fazer, mas não se podiam ver.

Quando uma geração posterior à dos primeiros modernistas começou a tentar captar instantâneos fotográficos da vida portuguesa, procurando uma via alternativa à da fotografia dos salões de amadores, seguindo a figura tutelar de Henri Cartier Bresson e o modelo das revistas noticiosas fotográficas, como a americana LIFE, encontrou um país visceralmente avesso à visibilidade. Um país que não gostava de ser apanhado em instantes decisivos, não combinados, não preparados.

Fotografar livremente com as pequenas câmaras de rolo, entretanto aparecidas, não era uma actividade isenta de riscos no Portugal do Estado Novo. Fotografar mendigos, ou fotografar agentes da autoridade e militares sem autorização, eram coisas que podiam acarretar detenção pela polícia comum e pela polícia política. Fotografar desconhecidos, e ser apanhado a fazê-lo, significava frequentemente discussões, insultos e por vezes mesmo agressões físicas. Gérald Castello-Lopes, um dos exemplos dessa geração, e uma das figuras incontornáveis da fotografia portuguesa do século XX, apontava frequentemente esse ambiente sufocante como a causa que o levou a abandonar durante muitos anos a prática da Fotografia.

Os irmãos Novais

Mário e Horácio Novais (ou Novaes, grafia original com que por vezes também aparecem designados), eram irmão, nascidos com onze anos de intervalo. Mário, o mais velho, nasceu no derradeiro ano do século dezanove, e Horácio no início da segunda década do século, em 1910, ano da implantação da República. Descendendo duma família com pergaminhos na fotografia portuguesa, também eles se tornaram fotógrafos. Fotógrafos comerciais, à falta de melhor classificação. Ambos se estabeleceram com estúdio próprio e, durante décadas, pairaram acima do comum estúdio fotográfico, sendo figuras de referência no que tocava a encomendas para instituições oficiais, grandes empresas e publicidade.

Sendo fotógrafos profissionais, situavam-se fora do plano estrito dos amadores com intenções artísticas que se organizavam em exposições em salões. Não quer isto dizer, porém, que se alheassem da vertente estética da fotografia. Quer um, quer o outro, expuseram publicamente o seu trabalho, e estavam a par da modernidade fotográfica e do experimentalismo que as vanguardas artísticas do seu tempo valorizavam.


Horácio Novais na sua primeira exposição, Lisboa, 1931
Colecções da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal (Flickr Commons

Não eram naturalmente estranhos ao instável ambiente político português que acabaria por ser o solo onde germinaria o Estado Novo, tendo mesmo registado o desfecho das revoltas militares e civis que redundavam em tiroteios e bombardeamentos da capital portuguesa.


Estúdio Horácio Novais, Revolta de 26 de agosto de 1931, Lisboa
Colecções da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal (Flickr Commons)

Quando o Estado Novo se estabeleceu, a par da imposição forçada ao país por via militar e policial, procurou igualmente impor-se por via simbólica, recrutando através do já referido SNI alguns dos mais reputados criadores portugueses para a construção de uma imagética que projetasse o seu ideário político e social. Mário e Horácio Novais viram a sua competência técnica e estética ser requerida para esse propósito, e quando o regime concretizou em 1940 a Exposição do Mundo Português, com a Europa já envolvida na Segunda Guerra Mundial, contribuíram com um decisivo e eficaz retrato desse momento maior da propaganda do Estado Novo.


Estúdio Mário Novais, padrão dos Descobrimentos e espelho de água, lisboa, 1940
Colecções da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal (Flickr Commons)


Estúdio Horácio Novais, Vista aérea da Exposição do Mundo Português, Lisboa, 1940
Colecções da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal (Flickr Commons)


Estúdio Horácio Novais, Inauguração da Exposição do Mundo Português, Lisboa,23 de Junho de 1940
Colecções da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal (Flickr Commons)

Mas engana-se quem espera, a partir desse e doutros trabalhos para Instituições públicas, poder olhar sem surpresas para o trabalho dos irmãos Novais, e reduzi-lo a uma espécie de corporização fotográfica da estética do Estado Novo. Uma tal generalização é errónea. Primeiro, desde logo, porque não sendo propriamente empregados do Estado, se espalharam por trabalhos que não tinham ligação com imagem do regime ou o seu quadro de valores. Os seus trabalho comerciais, encomendas de particulares e empresas, muitas vezes nem tangencialmente se tocavam com o ideário de nacionalismo isolacionista, pobreza honrada e ruralidade que perpassava por aquilo que se pode eventualmente designar como estética ou imagética salazarista. Depois, porque há algo no trabalho dos dois irmãos (que sendo personalidades distintas, com alguma diferença etária, mantinham uma sensibilidade próxima) que os afasta do conservadorismo dominante e dalguns dos lugares-comuns estéticos da época.

Outra Lisboa nocturna

Um dos pontos em que mais claramente se observa essa dissonância é nas imagens nocturnas da Lisboa do Estado Novo. A relação enviesada do regime com o período nocturno fez com que as representações fotográficas, ou cinematográficas, da Lisboa nocturna fossem sobretudo remetidas para o registo do anedótico e do típico, para uma cidade de vielas, de fadistas e de bêbados a conversar com candeeiros de rua. Uma noite lisboeta mais intimista, mais realista ou simplesmente diferente, aparece apenas esporadicamente nesse período. E curiosamente, entre os raros agentes da captura e exposição dessa Lisboa divergente encontram-se precisamente os dois irmãos Novais. No seu espólio, hoje conservado pela Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, encontramos algumas imagens duma capital portuguesa estranhamente moderna e urbana, uma cidade de reclames luminosos e néons, de automóveis e de luzes, fixas e em movimento. Uma cidade misteriosa, a espaços um verdadeiro cenário de film noir. Em algumas dessas imagens, não nos é difícil imaginá-la como o vespeiro de espiões que foi de facto, quando se tornou escala forçada de alguns poderosos, e de muitos refugiados desafortunados, durante a II Guerra Mundial. Podemos, nessas imagens, recriar a cidade para onde partiam os aviões de "Casablanca", filme americano de culto de Michael Curtiz.


Estúdio Mário Novais, Praça dos Restauradores, Lisboa, sem data
Colecções da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal (Flickr Commons)


Estúdio Horácio Novais, Praça do Rossio, Lisboa, sem data
Colecções da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal (Flickr Commons)


Estúdio Horácio Novais, Praça do Rossio, Lisboa, sem data
Colecções da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal (Flickr Commons)


Estúdio Horácio Novais, Estação do rossio, Lisboa, sem data
Colecções da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal (Flickr Commons)


Estúdio Horácio Novais, Praça dos Restauradores e avenida da Liberdade, Lisboa, sem data
Colecções da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal (Flickr Commons)

Noutras imagens nocturnas de Mário e Horácio Novais, a sua atracção pelas luzes, e pelo jogo destas com as trevas, fá-los afastar da abordagem realista, mostrando-nos uma urbe quase abstracta.


Estúdio Horácio Novais, Praça do Rossio em direcção às ruínas do Carmo, Lisboa, sem data
Colecções da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal (Flickr Commons)


Estúdio Mário Novais, Avenida Almirante Reis, Lisboa, sem data
Colecções da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal (Flickr Commons)


Estúdio Horácio Novais, Rua Augusta, Lisboa, sem data

Colecções da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal (Flickr Commons)


Estúdio Horácio Novais, Fogo de artifício e holofotes, Lisboa, sem data
Colecções da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal (Flickr Commons)

Por fim, há um outro tipo de registo que nos surpreende nesta abordagem noctívaga dos Novais. Perante a pouca luz disponível, um dos recursos de um fotógrafo em cenário nocturno consiste em aumentar o tempo de exposição da imagem. Usando também habilmente esta possibilidade, com um notável equilíbrio entre a nitidez e a indefinição das formas arrastadas pelo movimento que as exposições longas propiciam, os dois irmãos deixaram-nos espantosas imagens de estranhas ruas cheias de espectros, duma Lisboa fantasmagórica que nos convoca, quase hipnoticamente, o olhar.


Estúdio Mário Novais, Rua Augusta, Lisboa, sem data
Colecções da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal (Flickr Commons)


Estúdio Horácio Novais, Rua Augusta, Lisboa, sem data
Colecções da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal (Flickr Commons)


Estúdio Horácio Novais, Praça do Rossio, Lisboa, sem data
Colecções da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal (Flickr Commons)


Estúdio Mário Novais, Avenida Almirante Reis, Lisboa, sem data
Colecções da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal (Flickr Commons)

É esta a Lisboa surpreendente dos dois irmãos Novais. Fosse registada a pretexto de obrigações profissionais, como uma reportagem sobre as iluminações natalícias ou a fotografia duma montra de loja dum cliente, fosse captada por motivos outros, não detectáveis de imediato, é uma visão inspirada, por vezes insólita, incomum quase sempre. Uma Lisboa nocturna a preto e branco contrastado (sobretudo) em tempos cinzentos.



Leia mais: http://obviousmag.org/archives/2013/10/a_lisboa_nocturna_dos_irmaos_novais.html#ixzz2iORj3H8Q

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