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terça-feira, 29 de janeiro de 2013

LEVADAS DA MADEIRA, UMA OBRA HERCÚLEA


Singularidade que perpetua a tenacidade de um povo, as levadas da Madeira transformaram-se numa das principais atrações turísticas da ilha. Partamos à descoberta da Levada do Norte, com mais de 60 km de extensão.




Madeira, ano de 2010. Abre-se a torneira e um jacto de água irrompe. Não obstante se tratar de um recurso finito, a ilha da Madeira sempre foi pródiga em água. Os descobridores da ilha, no século dezasseis, logo descortinaram o potencial hídrico da “Pérola do Atlântico”, mas os tempos imediatos à descoberta da ilha revelaram as suas assimetrias. A norte, a água abundava, escasseando nas vertentes viradas a sul. A solução engendrada ainda hoje se reveste de importância primordial para o abastecimento das populações e irrigação dos solos. Se a romântica Veneza foi construída sobre um pântano, com os seus canais a nutrirem devaneios líricos intemporais, a viabilidade da Madeira como ilha habitável dependeu, também, dos cursos de água que desafiam e desbravam a sua orografia hostil. Falemos das levadas, legado da infinda astúcia e bravura humanas para a memória do Mundo.


A Levada do Norte é uma das mais emblemáticas. Com uma extensão que supera os 60 km, dividida em três troços, a importância da Levada do Norte foi, logo aquando da sua inauguração, reconhecida como obra estruturante para o desenvolvimento da Madeira. Em 1952, os mais altos dignitários do Estado Português deslocaram-se à Madeira para consagrar a abertura da Levada. Centenas de cidadãos apadrinharam os primeiros passos da água na Levada do Norte, percorrendo-a desde a Ribeira Brava até Câmara de Lobos, onde decorreu uma missa campal. Até então, e como comprovam relatos arrebatados da época, a Levada do Norte corporizava a mais complexa e morosa obra humana alguma vez realizada na madeira…



Partimos à descoberta dos segredos ancestrais que acompanham os desfiles incessantes da água, pela Levada do Norte. O dia nasceu luminoso, bom augúrio para a odisseia que nos esperava. Com Mara Cardoso, guia-intérprete, como cicerone de uma (re)descoberta, iniciámos a caminhada no Cabo Girão, concelho de Câmara de Lobos, a sul da ilha. Os primeiros passos permitiram compreender a importância dos canais de irrigação para os poios – campos agrícolas - que abundam numa paisagem muito humanizada. Pouca água corria na levada. Mara Cardoso remeteu a explicação para uma fase posterior do percurso, com o sorriso intrigante de uma verdadeira guardiã de segredos. «Numa viagem, o itinerário pode estar definido, mas há sempre surpresas pelo caminho…», argumentou. Seguimos caminho, certos de que, algures, a água nos traria a chave que desvenda mistérios. Pouco tempo depois, encontrámos o primeiro túnel do percurso, passagem que nos permitiu chegar à freguesia da Quinta Grande, ainda no concelho de Câmara de Lobos. Apesar da beleza paisagística que nos esperava nos 8,5km de caminho até à zona da Boa Morte, no concelho vizinho da Ribeira Brava, optámos por arrepiar caminho e reencontrar a Levada do Norte na Encumeada, espécie de fronteira entre o Sul e o Norte da Madeira.


A opção de transitar, directamente, para a Encumeada obrigou-nos a renunciar à parcela mais ousada de um percurso que nos levaria até à Central da Serra de Água. Este troço guinda-se a amostra perfeita da luta dos madeirenses contra o monopólio do basalto, vincando a silhueta das escarpas abismais que se inclinam sobre o vale da Serra de Água. São inúmeros os túneis a transpor, antecâmaras de trilhos vertiginosos, esculpidos pela força dos braços de heróis anónimos. Um romântico poderá ver nas incontáveis quedas de água um tributo lacrimoso das serras a todos os que perderam a pelo que não é aconselhável para pessoas com menor mobilidade e agilidade.



Quando chegámos à Encumeada, a luminosidade do sol já havia sido encoberta pelo nevoeiro. A variedade climática da Madeira revelava-se, no seu máximo esplendor. 7 graus célsius, nevoeiro e alguma precipitação compunham o cenário. Num bar de apoio aos viandantes, alguns procuravam na poncha o antídoto para o frio. Recuperadas as forças, imergimos no último troço da Levada do Norte, intitulado Folhadal, no âmago da Floresta Laurissilva, Património Natural da Humanidade.

O nome desta derradeira etapa deriva da abundância de Folhados, uma das árvores distintivas da Laurissilva. A Levada do Norte culmina no Sítio das Ginjas, em São Vicente. Até alcançar a meta, o epílogo da odisseia permitiu encontrar a chave para segredos cuja revelação Mara Cardoso adiou. Continuava a correr pouca água na levada. Depois de algumas centenas de metros calcorreados, vislumbrámos uma comporta aberta. A nossa cicerone explicou que aquela é uma das tarefas dos “levadeiros”, homens responsáveis pela manutenção das levadas e gestão das suas águas. Um dos mistérios estava, assim, desvendado.

Mas muito mais havia para descobrir. Entre a Encumeada e o Sítio das Ginjas, com “escala” no Folhadal, a diversidade da Laurissilva prospera. Mara Cardoso identifica as plantas com a facilidade com que reconhece um rosto amigo. Acaricia-as como se as cumprimentasse desde a última visita. Urzes, uveiras da serra e giestas bordejam o caminho. Mara Cardoso exalta a importância destas plantas para a captação de água, mediante a condensação do nevoeiro. As gotículas enxameiam os pequenos galhos, despenhando-se nos levadas. «Um leigo não imagina a importância destas plantas para a abastecimento das levadas», afirma.

Incrustadas no basalto, musgos, líquenes e hepáticas adornam os corredores da água. «São as primeiras plantas a aparecer, após uma derrocada, já que preparam o solo com matéria orgânica para as árvores de grande porte. A sua presença, aqui, indicia a pureza do ar, uma vez que não sobrevivem em habitats poluídos», elucida. Adiante, divisa a Faia das Ilhas, exemplo de uma árvore robusta cujo florescimento depende do labor das pequenas plantas.

Mara Cardoso já havia alertado para a possibilidade de encontrarmos imprevistos no caminho, depois de um inverno agreste. Confirmou-se, já que o túnel que desemboca no Folhadal está em manutenção, tornando-se arriscado palmilhá-lo. Mas este seria, certamente, o culminar perfeito da jornada, sentindo a força da terra vencida pela obstinação dos homens.

Artigo originalmente publicado na revista Essential Madeira Islands.
[Fotos creditadas a royalmadeira.com e a Museu Vicentes]

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