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terça-feira, 3 de julho de 2012

Um escritor nasce e morre



"Nasci numa tarde de julho, na pequena cidade onde havia uma cadeia, uma igreja e uma escola bem próximas, umas das outras, e que se chamava Turmalinas. A cadeia era velha, descascada na parede dos fundos, Deus sabe como os presos lá dentro viviam e comiam, mas exercia sobre nós uma fascinação inelutável (era o lugar onde se fabricavam gaiolas, vassouras, flores de papel, bonecos de pau). A igreja também era velha, porém não tinha o mesmo prestígio. 

E a escola, nova de quatro ou cinco anos, era o lugar menos estimado de todos. Foi aí que nasci: Nasci na sala do 3 ° ano, sendo professora D. Emerenciana Barbosa, que Deus tenha. Até então, era analfabeto e despretensioso. Lembro-me: nesse dia de julho, o sol que descia da serra era bravo e parado. A aula era de geografia, e a professora traçava no quadro-negro nomes de países distantes. As cidades vinham surgindo na ponte dos nomes, e Paris era uma torre ao lado de uma ponte e de um rio, a Inglaterra não se enxergava bem no nevoeiro, um esquimó, um condor surgiam misteriosamente, trazendo países inteiros. Então, nasci. 

De repente nasci, isto é, senti necessidade de escrever. Nunca pensara no que podia sair do papel e do lápis, a não ser bonecos sem pescoço, com cinco riscos representando as mãos. Nesse momento, porém, minha mão avançou para a carteira à procura de um objeto, achou-o, apertou-o irresistivelmente, escreveu alguma coisa parecida com a narração de uma viagem de Turmalinas ao Pólo Norte.



É talvez a mais curta narração no gênero. Dez linhas, inclusive o naufrágio e a visita ao vulcão. Eu escrevia com o rosto ardendo, e a mão veloz tropeçando sobre complicações ortográficas, mas passava adiante. Isso durou talvez um quarto de hora, e valeu-me a interpelação de D. Emerenciana :



- Juquita, que que você está fazendo?



0 rosto ficou mais quente, não respondi. Ela insistiu :



- Me dá esse papel aí. . . Me dá aqui.



Eu relutava, mas seus óculos eram imperiosos. Sucumbido, levantei-me, o braço duro segurando a ponta do papel, a classe toda olhando para mim, gozando já o espetáculo da humilhação. D. Emerenciana passou os óculos pelo papel e, com assombro para mim, declarou à classe:



- Vocês estão rindo do Juquita. Não façam isso. Ele fez uma descrição muito chique, mostrou que está aproveitando bem as aulas.



Uma pausa, e rematou:



- Continue, Juquita. Você ainda será um grande escritor."

Carlos Drummond de Andrade

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